sexta-feira, 28 de abril de 2017

Ilíada - Edições, leitura e releituras.

Para amantes da literatura, da História e da Grécia Antiga, a Ilíada é referência. Obra de grande impacto, sendo um clássico da literatura universal, os escritos de Homero, ou atribuídos a ele, continuam a despertar paixões e uma legião de ávidos leitores, sendo ainda hoje um espelho dos ímpetos humanos em suas trajetórias individuais e coletivas. Com o intuito de ajudar os interessados, alunos, professores e demais curiosos, apresento as mais recentes traduções e edições da Ilíada em português, breve considerações e o início do canto I de cada edição com o objetivo de mostrar as diferenças entre as traduções.

Rafael Dantas
Historiador - Universidade Federal da Bahia.

Ilíada, Homero. Tradução: Odorico Mendes.
Ateliê Editorial/Editora Unicamp.

Ilíada, Homero. Tradução: Odorico Mendes (1799 – 1864) 
Editora: Ateliê Editorial/Editora Unicamp.

Tradução direta do grego do século XIX de cunho erudito e rebuscado com uma sonoridade mais explícita. Foi durante décadas referência da obra no Brasil. Por ser mais rebuscada trazendo alguns termos romanos, como Jove (Zeus) e ressaltar a sonoridade dos versos gregos, a leitura para iniciantes, pode parecer difícil, mas nada que dificulte a contemplação da obra. Além de possuir um acabamento elegante, sóbrio com linhas clássicas, é uma das mais bonitas e bem acabadas edições no mercado. Mendes, além de poeta e importante tradutor, também foi político. Nasceu em São Luiz do Maranhão. 

Canto I

“Canta-me, ó deusa, do Peleio Aquiles
A ira tenaz, que, lutuosa aos Gregos,
Verdes no Orco lançou mil fortes almas,
Corpos de heróis a cães e abutres pasto:
Lei foi de Jove, em rixa ao discordarem
O de homens chefe e o Mirmidon divino...”

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Ilíada, Homero. Tradução: Carlos Alberto Nunes.
Nova Fronteira.

Ilíada, Homero. Tradução: Carlos Alberto Nunes (1897 – 1990)
Editora:Nova Fronteira.

Tradução de meados do século XX em versos direto do grego claramente mais explicativa, com agradável apresentação narrativa lembrando uma "prosa ritmada", como diz Haroldo de Campos¹. A edição mostra um acabamento moderno evocando o Cavalo de Troia na capa - que não aparece no livro e sim na Odisseia e na Eneida - sobre tonalidade que passa a aparência de antigo, ou pode fazer alusão a terra, solo, as batalhas travadas ao longo do conflito entre gregos e troianos. Importante destacar que o livro compõe o box juntamente com a Odisseia, em capa azul, fazendo referência as viagens de Odisseu. Carlos Alberto Nunes foi um literato maranhense, poeta, médico formado pela antiga Faculdade de Medicina da Bahia, sendo um dos maiores tradutores brasileiros, legando para o português além das obras de Homero, Platão, Virgílio, e o teatro completo de Shakespeare.

Canto I

“Canta-me a Cólera - ó deusa! – funesta de Aquiles Pelida,
Causa que foi de os Aquivos sofrerem trabalhos sem conta
e de baixarem para o Hades as almas de heróis numerosos
e esclarecidos, ficando eles próprios aos cães atirados
e como pasto das aves. Cumpriu-se de Zeus o desígnio
desde o principio em que os dois, em discórdia, ficaram cindidos,
o de Atreu filho, senhor de guerreiros, e Aquiles divino.
...”

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Ilíada, Homero. Tradução: Haroldo de Campos.
Benvirá.

Ilíada, Homero. Tradução: Haroldo de Campos (1929 – 2003)
Editora: Benvirá.

Tradução do final do século XX buscando a métrica grega recuperando os "diversos planos formais do poema"², segundo o Dr. em literatura grega da Universidade de São Paulo, Trajano Vieira. Belíssima edição em dois volumes trazendo elementos artísticos com traços greco-romanos em sua capa. O texto se aproxima da tradução do Odorico Mendes com termos gregos com um cunho rebuscado, no entanto faz uma série de correções e melhoramentos. O paulista Haroldo de Campos foi poeta e um grande tradutor brasileiro, lecionando na PUC de São Paulo e em Austin no Texas, EUA.

Canto I

“A ira, Deusa, celebra do Peleio Aquiles,
o irado desvario, que aos Aqueus tantas penas
trouxe, e incontáveis almas arrojou no Hades de
valentes, de heróis, espólio para os cães,
pasto de aves rapaces: fez-se a lei de Zeus;
desde que por primeiro a discórdia apartou o
Atreide, chefe de homens, e o divino Aquiles...”

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Ilíada, Homero. Tradução: Frederico Lourenço.
Penguin.



Ilíada, Homero. Tradução: Frederico Lourenço. (1963 - ) 
Editora: Penguin/Companhia das Letras.

Tradução de 2005 em versos livres e mais acessíveis. Das três traduções apresentadas essa é a de mais fácil leitura. Os termos utilizados são próximos a maioria dos leitores, se afastando de um rebuscamento narrativo, para apresentar o texto de forma mais acessível e direta. Trabalho gráfico simples, mas harmônico, como em outros livros da Penguin. Lourenço é um escritor português, tradutor e especialista em línguas clássicas, atualmente professor na Universidade de Coimbra.

Canto I

“Canta, ó deusa, a cólera de Aquiles, o Pelida
(mortífera!, que tantas dores trouxe aos Aqueus
e tantas almas valentes de heróis lançou no Hades,
ficando seus corpos como presa para cães e aves
de rapina, enquanto se cumpria a vontade de Zeus),
desde o momento em que primeiro se desentenderam
o Atrida, soberano dos homens, e o divino Aquiles...” 

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Referências e indicações:

¹ e ² A Ilíada de Haroldo. em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs25049903.htm

Homero. Ilíada. Tradução Frederico Lourenço. Penguin/Companhia das Letras.
http://www.companhiadasletras.com.br/trechos/85050.pdf
Homero. Ilíada. Tradução Odorico Mendes. Ateliê Editorial.
http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/iliadap.pdf
A Ilíada de Haroldo. Entrevista
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs25049903.htm
Trajano Vieira. Ilíada Recriada. Revista USP, São Paulo 2001.
Tida Carvalho. Haroldo de Campos: Traduttore, Traditore? Sobre a Tradução da Ilíada. ZUNÁI – Revistaa Et debates. 
http://www.revistazunai.com/ensaios/tida_carvalho_haroldodecampos.htm


quinta-feira, 30 de março de 2017

Salvador – Crônica de uma expressividade urbana, entre o antigo e o moderno.

fotografia aérea de Salvador em 1959 exibe uma cidade enraizada por seus vales ainda com predomínio do verde e áreas cobertas por dunas na região de Itapuã. Infelizmente grande parte do verde e boa parte das dunas não existe mais.

Cidade do Salvador da Bahia em 1959/2013. Aerofoto com imagem do Google Maps. (Clique para Ampliar)
Reprodução feita por historiador Rubens Antonio.
Rafael Dantas.
Historiador*

Em 1959 a Cidade da Bahia, como era conhecida Salvador, tinha ares de uma modernização marcante acentuando pouco a pouco novos marcos ao lado dos antigos conjuntos de casarios e igrejas existentes. Ao mesmo tempo a voraz sede pelo novo, juntamente com o descaso e interesses vigentes, ajudou a desmantelar antigos resquícios arquitetônicos na urbe, repleta de sobrados no centro antigo e cidade baixa, solares imponentes como o Amado Bahia na Ribeira (inaugurado em 1904), e palacetes no Campo Grande, Vitória e Graça, como o Martins Catharino (1912), muitos arruinados e demolidos nas décadas seguintes. Suas ruas, vielas, avenidas, travessas e ladeiras, ganharam décadas depois a companhia de construções com um novo rigor estético, contrastando com o colonial, neoclássico e eclético de suas fachadas. Nesse afã por uma modernidade, na tentativa de acompanhar o progresso da região sudeste, e sanar os atrasos que atormentavam as mentes das elites politicas e econômicas da Bahia, muito foi demolido e grande parte do que foi construído enterrou elementos significativos da memória urbana.

Ao passo que novas avenidas rasgaram os vales, como a Centenário em 1949 no governo Otavio Mangabeira (1947 – 1951), seguindo os planos de Mario Leal Ferreira e o EPUCS, novos ícones arquitetônicos como a Fonte Nova (inaugurada em 1951), Edifício Caramuru (1946) no Comércio – esse ainda com vários casarões das primeiras décadas do XX – e o Hotel da Bahia, projeto do arquiteto baiano Diógenes Rebouças e Paulo Antunes Ribeiro (inaugurado simbolicamente em 1951), surgiam como expressividade de uma Salvador moderna que ainda dialogavam com certo equilíbrio com seu entorno antigo.

O Hotel da Bahia, atual Sheraton - Bahia, visto do Passeio Público na década de 50. O moderno bailando entre o antigo. Podemos notar os casarões que ladeavam o prédio projetado por Rebouças. Hoje a vista foi coberta pelos prédios residenciais construídos em volta.
Imagem: Guia Geográfico - Salvador. 


Nos anos seguintes com o expressivo crescimento de Salvador novos contornos passam a ser delimitados. O centro, já sufocado, mas ainda referência comercial, política, e claro, religiosa, ícone com suas seculares construções, algumas demolidas, como a Sé em 1933 e a Igreja de São Pedro Velha para construção da Avenida Sete de Setembro em 1913 (Governo J.J. Seabra), e os prédios símbolos do poder como o palácio do governo, Rio Branco, e o palácio da Aclamação, residência do governador na época (até o final da década de 60), ainda eram referências administrativas e políticas, símbolos pulsantes juntamente com os comércios dessa parte da cidade.

Seguindo a ótica de expansão e modernização urbana ao lado de uma política de “modernização conservadora” como lembra o cientista político Paulo Fábio Dantas, Antônio Carlos Magalhães (ACM), na época prefeito de Salvador em 1967, em seguida governador em 1971, iniciou um extenso projeto de abertura de avenidas nos vales, como o Vale do Canela em 1974 e Barris em 1975, dando continuidade a ideia de Leal Ferreira e o EPUCS. A Cidade, ainda concentrada no antigo centro, passa nos anos posteriores a ter novos polos econômicos, residenciais e de lazer. Uma atenção significativa é voltada para a preservação do Centro Histórico, ações marcantes para todo o conjunto de casarios e igrejas, e o sítio é declarado como Patrimônio Cultural da Humanidade pela UNESCO em 1985. A Avenida Paralela, tão criticada na época de sua construção (década de 70), iria se tornar uma das principais vias de escoamento para essa “nova” cidade que estava se desenvolvendo juntamente com o Centro Administrativo da Bahia, cravado no meio da mata. Ao lado dessa modernização e expansão populacional, com a mais de 640.000 mil habitantes na década de 60 e mais de 1.000.000 em 70, Salvador da Bahia unia elementos seculares, símbolos de suas tradições e recortes de uma Bahia antiga, decadente em seus palacetes, como lembra Kátia Mattoso em “Bahia uma província do Império”, e “destronada”, segundo Rinaldo César Leite em “A rainha destronada”. Caminhava bailando ao lado de novos traços modernos que aos poucos contornavam os espaços que estavam sendo construídos e outros modificados.

Nesse ritmo de crescimento, assim como em outras grandes cidades do Brasil, a volúpia pelo moderno juntamente com as perspectivas seguidas na época, mostravam sinais do caótico na locomotiva das transformações urbanas de Salvador. Aos poucos as áreas verdes foram sendo progressivamente devastadas, sucumbidas áreas históricas, zonas de dunas, rios e nascentes. Da vastidão verde que cobria boa parte do território soteropolitano em 1959, em 2013 data da segunda imagem, observamos ilhas de vegetação constantemente ameaçada por projetos que levam o nome de Green, Hortos e Parcs, ícones em aço e concreto, “paraísos” ladeados pelo caos urbano, e uma extensão de ocupações das mais variadas cobrindo grande parte do território do miolo em direção aos limites da Cidade. Centenas de palacetes e sobrados, de importante valor arquitetônico, retratos impregnados da história do povo da Bahia e das influências da época em que foram erguidos, dos seus residentes e das mãos que os construiu, foram demolidos e substituídos por prédios que tentaram ressaltar a dita modernidade do imobiliário soteropolitano, cortinas de concreto como no Corredor da Vitória. Das dunas, um sopro de ignorância, levou e continua levando, boa parte dessas areias que já encantaram Caymmi e Vinicius de Moraes. Engolidos, aterrados e poluídos, a maioria dos rios que já cortaram Salvador, alguns já poluídos nas primeiras décadas do XX, como apontou Teodoro Sampaio em uma época em que a cidade tinha em média 250.000 habitantes, hoje são córregos saturados de dejetos e cobertos por vias que em nada faz lembrar as descrições antigas de uma Salvador reconhecida por suas águas e "mil" fontes.

Recorte da Fotografia de Pierre Verger. Navegantes - 1949.
Imagem Encontrada em: besidecolors.

A comparação de uma fotografia aérea de Salvador em 1959, com uma de 2013, e outra em seus 468 anos de fundação, evidencia que temos muito o que aprender, analisar, planejar e tentar solucionar os problemas ainda existentes, buscando um equilíbrio entre crescimento e preservação. Pensar uma Cidade da Bahia com mais sensibilidade ambiental e consciência histórica, levando em consideração seus símbolos, a realidade do seu povo e seu entorno. Essa análise iconográfica evidencia uma miscelânea de ações, com inevitáveis permanências, alterações e perdas, que podem se intensificar se não observarmos a poesia que ainda resta na expressividade dos contornos da velha e moderna Salvador, essa ainda protegida por Todos os Santos.


*Historiador pela Universidade Federal da Bahia. Pesquisador voltado ao estudo das transformações urbanas e arquitetônicas na iconografia da Cidade do Salvador no século XX.


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Primeira imagem: Integração de várias aerofotos feita pelo Historiador Rubens Antônio. E imagem de satélite do Google.

Entrevista sobre os 468 anos da Fundação de Salvador com a repórter Anna Valéria (disponível aqui)

Referências e indicações:

MATTOSO, Katia. Bahia, século XIX: uma província do Império. Editora Nova Fronteira, 1992. Introdução.

LEITE, Reinaldo Cesar Nascimento. A rainha destronada. Discurso das elites sobre as grandezas e os infortúnios da Bahia nas primeiras décadas republicanas. UEFS, 2012.

VASCONCELOS, Pedro de Almeida. Salvador: Transformações e Permanências (1549-1999). Ilhéus: Editora Editus, 2002.

NOGUEIRA, Rita de Cásia Cordeiro. Saneamento da cidade de Salvador – de 1850 a 1925.